"Mas entre nós outros que, das nossas diferentes perspectivas culturais ou mesmo religiosas, igualmente rejeitamos cruzadas e jihads,é um diálogo que não só deveria ser possível mas que é urgente que seja. Mesmo assim, nunca será um diálogo fácil. Era bem mais fácil quando, por exemplo, Proudhon fazia a distinção entre a propriedade e a posse ou Karl Marx entre o capital e o trabalho. Ou quando a Constituição americana consagrou o direito à felicidade na terra e o que estava em discussão não era esse valor universalmente self-evident mas como melhor o implementar. As esquerdas diziam que assim, as direitas diziam que assado mas – a despeito de todos os horrores e de todos os conflitos gerados pelas suas opostas posições ideológicas - esquerdas e direitas, ao longo dos anos, foram adoptando ideias e soluções transpostas de umas para as outras. Assim, o capitalismo moderno – nem que fosse só para maior eficiência - incorporou muito do que o socialismo havia desejado ser e o socialismo moderno tornou-se numa versão humanizada do capitalismo, com as forças do mercado ao seu serviço. Mas isto só aconteceu, é claro, nas economias desenvolvidas das democracias ocidentais. Que são também aquelas que, e não sem razão, desejariam que os seus valores laboriosamente conquistados se expandissem para o resto do mundo onde as condições são dramaticamente piores, com extremos de degradação e de miséria impensáveis mesmo para os arautos do socialismo nas sociedades capitalistas do Século XIX.
Mas os termos em que formulam essa justa e desejável universalização de direitos humanos – os valores do Ocidente – encerram novas complexidades que ainda estão longe de ter sido resolvidas. Hoje em dia já não se fala de esquerdas e de direitas, ou só se fala com aspas na voz. Mas fala-se de universalismo e de relativismo. Que são conceitos que não correspondem necessariamente às ideologias que haviam sido da esquerda ou da direita até porque todos agora estão - estamos - de acordo que seria boa ideia, por exemplo, haver democracia em todo o mundo. Pois seria, mas como? Impondo-a para impedir continuados genocídios, fome, epidemias causadas por descuro, corrupção instituída como poder? Não, certamente que não, dizem os relativistas: cada sociedade tem a sua dinâmica própria, há que respeitar as diferenças, as especificidades culturais. E, na verdade, ninguém de boa vontade pode discordar de que assim deve ser. Mas respeitar, como valores legítimos, as diferenças e as especificidades culturais que se manifestam em genocídios, fome, epidemias, e também na excisão dos clítoris das adolescentes, em mãos judicialmente decepadas, em mulheres adúlteras apedrejadas é, para dizer o mínimo, eticamente complicado, quanto mais não seja pela paternalística presunção implícita de que, coitados, não sabem o que fazem. E nas sociedades que se arrogam o direito moral (pior, o dever neo-colonialista) de impor aos outros os seus justos valores democráticos pela força das armas não há também corrupção? E tortura institucionalizada? E não há escravatura sexual que melhor não é do que a castração feminina?" (